Por Rebecca Portela

Em um dos vídeos digitalizados em nossa pesquisa, a reportagem da TV canadense Téle-Québec classifica o trabalho da TV Viva como “(…) uma verdadeira batalha entre Davi e Golias”. Com razão: em um momento em que as disputas comunicacionais passavam a ser cada vez mais compreendidas como parte das disputas políticas – pois, em essência, era um projeto de país que se discutia no contexto da constituinte, depois de longos anos de ditadura –, a TV Viva se construiu como uma notável plataforma de participação popular, pioneira no esforço de democratização da comunicação. 

Isso porque compartilhou com quem historicamente estava sempre do outro lado da tela a possibilidade de contribuir com um conteúdo que, finalmente, era voltado para os “seus e suas”: comunidades marginalizadas de Olinda, do Recife e sua região metropolitana e do interior do Estado de Pernambuco. Essas comunidades viraram espaço para a produção e difusão de reportagens e notícias, protagonizadas por vizinhos, crianças, transeuntes, trabalhadores e trabalhadoras, parceiros de território e de luta; as lentes da TV Viva apresentaram um país muito distinto do que era retratado pelas mídias hegemônicas.

A “novidade” não estava somente em envolver a população na definição de pautas e convidá-la a participar dos conteúdos, mas também em garantir que este conteúdo “fosse devolvido” às pessoas: por vários anos, a TV Viva exibiu a sua produção de forma itinerante, através de projeção com telões em praças e locais públicos de várias comunidades, evento que atraía a toda a vizinhança, com olhares curiosos, em disputa aberta com o “horário nobre” da TV de massas (já que as exibições ocorriam às 20 horas).

De início, a cada quinze dias um novo programa era apresentado. A escolha dos bairros que iriam receber a projeção – de acordo com Eduardo Homem, em entrevista para a nossa pesquisa – levava em conta o nível de organização e articulação das comunidades. Bairros que contavam com espaços abertos de diálogo e construção popular, como associações de moradores, sindicatos, grupos de mães, movimentos de mulheres, dentre outros, eram vistos como potenciais interlocutores da TV Viva, com capacidade de contribuir ativamente com as suas discussões e definições de pautas.

Neste contexto, oito bairros da periferia do Recife foram escolhidos para dar lugar à projeção, mas a receptividade ao projeto foi tão positiva que, a partir de 1986, a TV Viva passou a apresentar sua produção em 12 bairros. Ao comemorar a sua primeira década de existência, no início de 1994, haviam 24 bairros no roteiro de exibição (BEZERRA, 2001) e, na reta final do projeto (anos 2000), chegou a alcançar 32 bairros da Região Metropolitana do Recife. Algumas das comunidades e regiões que receberam por vários anos as exibições foram Brasília Teimosa, Coque, Morro da Conceição, Casa Amarela, Jordão, Guabiraba, Chão de Estrelas, Passarinho, Peixinhos, Alto da Bondade, Sítio Histórico de Olinda, Ibura, Sítio Grande, Várzea, Alto da Colina, Paulista, Itacuruba.

Do ponto de vista da realização, a metodologia de trabalho se fundava no estabelecimento de uma conexão franca entre a equipe de vídeo e os personagens populares. Mais do que as perguntas que seriam feitas, era central resguardar condições para que a própria população pudesse formular as suas reflexões, criando um espaço de escuta ativa e sensível para quem aparecia à frente das câmeras. O slogan assumido pela TV Viva, “A sua imagem”, sintetiza tal processo: diante do telão de 72 polegadas, as pessoas experimentavam a rara oportunidade de se enxergar do “outro lado da transmissão”. Em algumas exibições, chegava-se a adotar a prática da “câmera aberta”, permitindo aos moradores de um local operarem a estrutura de produção da imagem. 

Os vídeos do acervo da TV Viva digitalizados através deste projeto estavam em formato U-Matic e oferecem um panorama interessante do que foi sua produção. De memórias de manifestações a encontros, passando pelo telejornal Olho VIvo, momentos icônicos como o “Bom dia, Déo”, o conteúdo do acervo digitalizado é atravessado por questões, debates e denúncias ligadas ao direito à moradia, luta pela terra, direitos humanos, melhorias nas condições de trabalho, acesso à educação e à saúde, infra-estrutura urbana, dentre outras. As categorias de análise dialogam com aquelas organizadas por Luiz Fernando Santoro no livro “A Imagem nas Mãos”, mas foram desenhadas, sobretudo, a partir de um recorte transversal da amostra, que não se atém unicamente ao uso que a produtora fez do seu material. São elas: (1) Registros de luta, (2) Colaborações; (3) Produções originais e (4) TV Viva ecoando.

1. Registros de Luta 

Uma das principais questões que norteiam o debate sobre os usos do vídeo popular no Brasil é a forma pela qual os grupos produtores de vídeo se inserem nos movimentos, por um lado, e as relações que são estabelecidas com as instâncias de poder, por outro. No caso da TV Viva, a rede de relações construída gradativamente com os movimentos populares e organizações sociais permitiu acompanhar s lutas políticas em curso: eram as associações de bairro, os sindicatos, os grupos de moradores que, muitas vezes, indicavam as pautas que a TV Viva iria cobrir. Essa primeira categoria foi intitulada “Registros de Luta” por reunir manifestações, encontros, fóruns temáticos e outras ocasiões nas quais a TV Viva documentou as ações desenvolvidas por outros coletivos, fortalecendo suas pautas.

Os vídeos reunidos nessa categoria trazem, no entanto, características distintas no que diz respeito ao formato: alguns são materiais brutos (não passaram por edição) e contam com a presença de figuras públicas de relevância histórica, como Dom Helder Câmara, em encontro com ativistas da área de direitos humanos, e o político Miguel Arraes, em encontro com lideranças sindicais.

Outros possuem edição e, com isso, adquirem outra dinâmica, como o registro do 5º Congresso Nacional das Empregadas Domésticas, vídeo no qual Eduardo Homem faz perguntas às participantes buscando estimular a elaboração política de suas experiências e fortalecer o sentido de organização coletiva. 

Um dos materiais que se destacam é o registro de um ato da campanha salarial de trabalhadores canavieiros em 1986. O vídeo se inicia com o zoom out de uma cruz vermelha, que revela, aos poucos, uma grande manifestação reunindo mulheres, crianças, homens e idosos. Ao lado da cruz, uma faixa que sumariza o motivo da manifestação: em letras pretas em fundo branco, lemos “Trabalhadores da cana querem paz e justiça na sua campanha salarial”. A repórter Adriana Tigre pergunta a uma das trabalhadoras, que acompanha a marcha com uma criança no colo, o motivo de sua presença na passeata, no que esta responde: “Porque mataram o meu marido”. 

Entre fortes depoimentos, o desabafo do presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais contextualiza a presença daquela mulher e de seus filhos: Ninguém faz justiça pelo pequeno que morre (…) O trabalhador é espancado, morto, por um cacho de bananas. Foi o caso do marido dessa criatura, que cortou um cacho para dar de comer aos cinco filhos que estavam morrendo de fome… No outro dia o patrão foi brigar com ele e acabou matando o trabalhador (…) ainda foi buscar a polícia para tirar o corpo e disse que matou em legítima defesa”. Diante da realidade de enorme desigualdade e fome, a manifestação dos trabalhadores rurais e suas famílias não se dava “somente” em função da campanha salarial, mas também como uma luta coletiva pelo direito de existir.

2. Colaborações

Essa categoria reúne conteúdos produzidos pela TV Viva com a função de divulgar o trabalho de organizações da sociedade civil. De acordo com Eduardo Homem, os fundadores da TV Viva compartilhavam certa inquietação com o fato de que, ainda que muitas organizações atuassem organicamente em camadas populares da sociedade, muito pouco deste trabalho chegava a um público mais amplo, justamente por falta de registro e divulgação. Considerando que o vídeo era um instrumento importante para este tipo de trabalho de comunicação, surgiu a ideia de disponibilizar o corpo técnico e as ferramentas da TV Viva para oferecer o serviço para as organizações.

Um material bastante representativo é o registro documental do 5º Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais (CONTAG). Trata-se de um vídeo bem estruturado, narrado, com edição, que documenta as principais atividades do Congresso, desde a cobertura de grupos de trabalhos temáticos até a ação da articulação de mulheres que ocorria nos intervalos. Apesar do evento ter acontecido em 1991, ele tem início com imagens da instalação da Assembleia Constituinte, em 1988, demonstrando a presença e participação da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura numa construção mais ampla e com incidência política notável.

A primeira experiência da TV Viva com esse arranjo colaborativo foi com a cobertura de um ato dos servidores da Universidade Federal de Pernambuco, que estavam em greve. Tida como exitosa, o produto no qual resultou ficou conhecido como “Universidade na Praça”, tendo o material sido utilizado pelos servidores por muitos anos – o que evidencia não só a demanda desse tipo de produção como também a importância formativa do registro.

Eduardo Homem conta que aprendeu em um curso com o documentarista estadonidense Jon Alpert, para o qual recebeu uma bolsa de organizações internacionais que apoiaram a TV Viva, a metodologia de aprender filmando, pela prática e de forma direta. Isso se traduziu em um trabalho no qual a equipe ia a campo para retratar personagens e situações de forma aberta e assumida, por vezes entrevistando o público beneficiado pelas ações das organizações, por vezes conversando com as pessoas que nelas atuavam. 

Um dos materiais desta natureza, de grande repercussão, foi a coleção de vídeos produzidos para a Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado de Pernambuco  (FETAPE). A equipe da TV Viva chegou a propor, ao lado da FETAPE um projeto de compra de televisores e aparelhos de videocassete para cada um dos polos da federação, que viria a ser aprovado pela Fundação Ford. 

Esse exemplo evidencia a importância do vídeo como ferramenta de educação e sensibilização, além da sua relevância para o processo de documentação e registro do trabalho das próprias organizações. Assim, essa espécie de trabalho de assessoria prestado pela TV Viva era também uma forma de mobilizar as lutas a partir das especificidades da área da comunicação. Muito além de um serviço prestado em busca de retorno financeiro, a disponibilização das suas ferramentas para as organizações da sociedade civil tinha um objetivo colaborativo, tendo como horizonte o fortalecimento da atuação dessas organizações. 

3. Produções originais

Algumas das fitas digitalizadas por nosso projeto reúnem compilados de vídeos mais curtos, que, na verdade, viriam a constituir blocos de programas, ou quadros que seriam integrados a esses blocos. Ao observar a amostra como um todo, é possível identificar a existëncia de várias produções originais da TV Viva, que, apesar de abordarem diferentes universos temáticos, carregavam sempre um propósito de conscientização, atrelado a demandas sociais mais urgentes ou relacionadas às expressões culturais e modos de vida periféricos.

A maior parte desses vídeos traz programas liderados pelo personagem Brivaldo, representado com maestria por Cláudio Ferrário, que abordava a população nas ruas para compartilhar algum questionamento, relacionado à temática central de cada programa, sempre de forma muito descontraída. Cláudio Bezerra (2001, p. 83) descreve o “Bom dia, Déo” como “inclassificável”, pois tratava-se de uma espécie de “catarse pública”, na qual as tensões do cotidiano dos transeuntes eram liberadas através do riso. 

O tom debochado adotado por Brivaldo muitas vezes provocava também nas pessoas reflexões sobre questões estruturais. Um dos programas desse recorte tem início com uma vinheta de propaganda do governo federal na qual se lê o texto “você trabalhou e o Brasil mudou”. Seguindo o mote, Brivaldo vai às ruas transformando a afirmação em interrogação – “Você trabalhou. E o Brasil, mudou?” –, convidando a população a fazer uma análise de conjuntura a partir dos seus próprios termos e perspectivas. 

Registramos aqui também reportagens interessantes (que seriam posteriormente finalizadas dentro do Jornal Olho Vivo) abordando desde a luta pela posse da terra dos moradores do Pina até a confecção de bonecos gigantes para o carnaval de Olinda. Dentre essas reportagens, há a cobertura de uma visita do então prefeito Jarbas Vasconcelos e do ministro do desenvolvimento urbano Deni Schwartz ao bairro do Ibura, onde são recebidos com faixas e cânticos de protesto. Os moradores participam dando entrevistas e denunciando as condições precárias de vida no local, especialmente no que diz respeito à habitação. Além das casas, construídas com materiais não permanentes e em risco constante de desabamento, assustava a falta de assistência básica de saúde. O depoimento de uma senhora no final do vídeo formula a revolta do povo: “Pra quê que nós temos um governo dizendo que é a nova república? Dizendo que tudo tem que mudar… Dando uma boa esperança ao povo? Se nós temos governo pra isso, então a gente espera um Brasil novo, e um Brasil novo só pode ter se acabar com as favelas”.

Dentro do escopo da TV Viva, havia também espaço para documentar e divulgar iniciativas culturais populares diversas. Um bom exemplo disso é o quadro “Flor do Meu Bairro”, cujo título faz referência a uma música de Nelson Gonçalves, e apresentava figuras que se tornaram referência em seus territórios. Em um desses quadros, é contada a história de Nelson Barbosa da Silva, o Nelson Poeta, morador do Morro da Conceição, entrevistado por Eduardo Homem no quintal de casa  O homônimo de Nelson Gonçalves discorre sobre a interseção entre a sua arte e sua luta e, quando indagado “do que se trata essa luta?”, responde: “a minha luta é a luta do pessoal pobre e humilde como eu, dos trabalhadores que moram nos morros, nos córregos, nos alagados, nas descidas e nas invasões… É a mesma luta”. Em uma de suas letras, versa sobre a questão da posse da terra no bairro de Casa Amarela: “Suas terras exploradas são de Deus, donos não têm… Tuas terras são do povo, tuas terras é de ninguém”. 

4. TV Viva ecoando

A linguagem popular e descontraída da TV Viva não chamou a atenção apenas das comunidades onde o projetor itinerante circulava. O estilo de fazer televisão protagonizado pela população representava uma verdadeira multiplicação de possibilidades expressivas que fugiam do óbvio praticado pela mídia de massa, e isso foi amplamente reconhecido por outros veículos. Esta categoria reúne clippings de conteúdos que foram produzidos sobre a TV Viva ou realizados em parceria com ela.

O programa Curto-Circuito, veiculado pela TVE, incluía em sua programação alguns quadros de realização da TV Viva, que era apresentada como uma “televisão popular”, “com sotaque regional”, que trazia “imagens de gente simples e criativa do nordeste”. É interessante observar o modo como os apresentadores do programa introduziam a TV Viva, fazendo sempre menção à regionalidade, ao sotaque exótico e à simplicidade que constituía aquele povo “estrangeiro”, reproduzindo, assim, a leitura padronizada sobre tudo o que se produzia fora do eixo de produções hegemônicas do audiovisual.  

Outro conteúdo em que a TV Viva participa como parceira de um grande veículo de mídia é um recorte do programa Casseta e Planeta Urgente, da Rede Globo. Nele, o personagem Brivaldo, o grande mestre de cerimônias da TV Viva, apresenta um quadro utilizando sua espontaneidade e extroversão para entrevistar pessoas nas ruas do Recife. É interessante perceber, como afirma Cláudio Bezerra (2001, p.65), que o personagem exerce claramente uma influência vanguardista de formato e linguagem, apropriados pela Rede Globonão só no Casseta e Planeta, mas também em programas como a TV Pirata e o Brasil Legal.

Também destacamos a já citada reportagem da emissora de televisão estatal canadense Téle-Québec. O vídeo com o programa Nord Sud apresenta a TV Viva ao público estrangeiro, contextualizando geograficamente a iniciativa, em desenvolvimento em “uma das regiões mais pobres do mundo, o nordeste brasileiro”. O objetivo do projeto, segundo os canadenses, é “(…) dar voz à parte mais desfavorecida da população que, habitualmente, os meios de comunicação tradicionais não atendem” (tradução nossa). A matéria detalha os quadros da programação, mostrando trechos, além de utilizar arquivos preciosos da montagem do telão nas comunidades e da recepção calorosa da população. 

Referências bibliográficas:

SANTORO, Luiz Fernando. A imagem nas mãos – o vídeo popular no Brasil. São Paulo: Summus, 1989. 

GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Edusp, 1991.

BEZERRA, Cláudio Roberto de Araújo. TRADIÇÃO E RUPTURA NO AUDIOVISUALUm estudo de linguagem do vídeo popular em Pernambuco na década de 1980. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. 2001.