O que o vídeo popular nos ensina hoje
Por Vinícius Andrade
O projeto Acervo do Vídeo Popular em Pernambuco envolve a pesquisa, a digitalização e a divulgação de imagens gravadas em vídeo (U-Matic, Betacam, VHS) por movimentos sociais e organizações populares atuantes no nosso Estado entre os anos 1980 e 1990. Essa produção audiovisual incidiu e participou de acontecimentos decisivos de nossa história recente, como a campanha pelas eleições diretas e a formulação da constituição de 1988, ficando conhecida, em conjunto com produções de outras regiões, como Movimento do Vídeo Popular.
Na origem e como motor de nosso projeto está a pergunta: o que a produção no formato de vídeo nascida da parceria entre pessoas da área de audiovisual e movimentos sociais, naquele contexto de vitalidade de participação democrática a partir de camadas populares, têm a nos ensinar ainda hoje?
Com a intenção de ativar essa discussão e apostando no aprendizado que é capaz de proporcionar, estabelecemos colaboração com três organizações: o SOS Corpo – Instiuto Feminista para Democracia, o Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a TV Viva. Além de terem se utilizado amplamente da ferramenta do vídeo entre os anos 1980 e 1990 – cada uma a partir de pautas e pedagogias próprias (pelo feminismo, reforma agrária e direito à comunicação) – tratam-se de grupos ainda atuantes no Estado, cujo trabalho acreditamos e com os quais nos solidarizamos.
Nesse sentido, nossa equipe de pesquisa foi montada na interlocução com integrantes desses coletivos, aptos a atuar no projeto desde um lugar orgânico, sendo dispostos em núcleos paralelos de pesquisa em torno do acervo de cada movimento. A consultoria de Jarluzia Azevêdo foi fundamental para construir as bases metodológicas do processo: em primeiro lugar, o inventário das fitas (a documentação de seu estado físico) – condição para enviá-las à digitalização; depois, a catalogação, que avançou para o conteúdo audiovisual nelas registrado; por fim, o trabalho de curadoria e as estratégias de publicização.
Diante do fato de que as dificuldades materiais enfrentadas pelos movimentos impõem também dificuldades de preservação para sua memória, o nosso esforço central foi recuperar e digitalizar o maior número de fitas possível. Começamos, assim, pelo acervo da SOS Corpo, cuja localização na sede da organização facilitava nosso acesso e o número reduzido de 40 fitas (em função das consequências do tempestuoso inverno recifense de 2021), nos dava mais controle e segurança. Foi como um treinamento para o trabalho no acervo do MST, que se encontrava em condições precárias em um escritório do movimento na cidade de Caruaru, no interior. O receio de perder tantas fitas com muitos materiais jamais editados (90), em formato frágil e com sinais evidentes de deterioração, fez com que um tempo mais dilatado fosse dedicado a esse acervo.
Apenas depois de lidar com a urgência de resguardar os dois primeiros conjuntos de fitas, alcançamos a TV Viva, que já desenvolvia um processo anterior de preservação e digitalização. Nesse caso, optamos por contribuir com a digitalização em alta qualidade de 10 fitas U-Matic que nunca haviam sido digitalizadas, e para as quais, inclusive, não havia máquina de processamento no Estado. Enviadas a um laboratório de São Paulo, elas passaram por um tratamento cuidadoso, que possibilitou manter as imagens na textura original e com a estética própria ao formato.
Em termos de conteúdo, nos parece que o mais autêntico desafio da pesquisa é captar a singularidade dos usos do vídeo por cada movimento. Além da nossa experiência de pesquisa e militância, nossa bússola foram as categorias organizadas por Luiz Fernando Santoro, no livro “A imagem nas mãos”, que, por serem gerais (como próprio autor adverte), não lograram detalhar nuances práticas da realização no interior de cada organização ou movimento. Nossas discussões, nesse sentido, foram mais demoradas, e os textos de cada parte da pesquisa refletem esses debates.
Com esse percurso, foi natural que o processo de trabalho se assumisse como instância de discussão permanente de ideias e produção coletiva de conhecimento. E, assim, apesar dos desafios, finalizamos a primeira etapa de trabalho satisfeitos por termos digitalizado 40 fitas além do previsto; por termos recuperado o total de fitas do acervo do SOS Corpo; por salvaguardar as mais de 100 fitas do MST, agora já escoadas em produções recentes do movimento; por estarmos publicando fitas do acervo da TV Viva cujo formato e estado exigiam uma digitalização mais trabalhosa.
Diante da perspectiva de continuidade do projeto por meio dos recursos da Lei Paulo Gustavo de Pernambuco, nosso próximo passo é o aprofundamento da divulgação dos achados da pesquisa, em termos de imagem e informação. Acreditamos que, para estar vivo de fato, um acervo precisa ser visto e repercutido. Desejamos não só ocupar as novas redes de comunicação para concretizar essa tarefa, mas também criar uma plataforma-repositório de pesquisa, como parte do nosso site, facilitando a realização de buscas nesses acervos históricos e permitindo o acréscimo de novos materiais por parte de outros coletivos. Além disso, planejamos promover exibições nos espaços dos movimentos – ver e discutir juntos as imagens, processos e histórias encontradas. Assim, do lugar de um projeto aprendiz, em todas as instâncias, do movimento do vídeo popular, esperamos que possamos colaborar para uma renovação das energias de enfrentamento das persistentes desigualdades de classe, raça e gênero que ainda hoje vivemos.
A história do SOS Corpo está entrelaçada à história do feminismo em Pernambuco. O Instituto foi criado em 1981 por militantes do Ação Mulher, um grupo de autorreflexão e ação política feminista que atuou no SOS Corpo Recife do final da década de 1970 ao início da década de 1980, e a partir do qual também floresceram outras iniciativas importantes no Estado, como a Casa da Mulher do Nordeste.
Em um dos vídeos digitalizados em nossa pesquisa, a reportagem da TV canadense Téle-Québec classifica o trabalho da TV Viva como “(…) uma verdadeira batalha entre Davi e Golias”. Com razão: em um momento em que as disputas comunicacionais passavam a ser cada vez mais compreendidas como parte das disputas políticas – pois, em essência, era um projeto de país que se discutia no contexto da constituinte, depois de longos anos de ditadura –, a TV Viva se construiu como uma notável plataforma de participação popular, pioneira no esforço de democratização da comunicação.
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é um movimento social fundado em 1984. De massa e autônomo, procura articular e organizar os trabalhadores rurais e a sociedade para conquistar a reforma agrária e um projeto popular para o Brasil.