Por Maria Cardozo e Sophia Branco

A história do SOS Corpo está entrelaçada à história do feminismo em Pernambuco. O Instituto foi criado em 1981 por militantes do Ação Mulher, um grupo de autorreflexão e ação política feminista que atuou no Recife do final da década de 1970 ao início da década de 1980, e a partir do qual também floresceram outras iniciativas importantes no Estado, como a Casa da Mulher do Nordeste. O fortalecimento da organização política das mulheres sempre foi uma das principais preocupações do SOS Corpo. Na sua trajetória, o Instituto construiu experiências e articulações importantes com mulheres que atuam em diferentes espaços: trabalhadoras rurais, trabalhadoras domésticas, mulheres organizadas em diferentes bairros da Região Metropolitana do Recife, acadêmicas, médicas, jornalistas, entre outros grupos. Esteve também na fundação do Fórum de Mulheres de Pernambuco, movimento feminista com forte atuação no estado até os dias de hoje. 

A saúde das mulheres e, mais especificamente, a saúde sexual e reprodutiva, foi o ponto catalisador da sua fundação, ainda que outras pautas que atravessam a vida das mulheres também estivessem presentes na sua atuação desde o início. Desse compromisso é que vem o nome SOS Corpo. Nos seus primeiros anos, o Instituto se dedicou principalmente a pesquisas, ações de comunicação e educação. Desse período destacamos a realização de importantes pesquisas sobre a incidência do câncer do colo do útero, esterilização compulsória das mulheres e a qualidade dos serviços públicos de saúde.  

Pesquisa, comunicação e educação popular eram e continuam sendo dimensões articuladas da atuação do Instituto. As pesquisas serviam de base para a incidência política do SOS Corpo na luta pela melhoria dos serviços públicos de saúde e também subsidiavam materiais de comunicação. A produção audiovisual do Instituto durante este período, muitas vezes realizada em parceria com a TV Viva, foi ampla e diversificada. As produções tinham função informativa, pedagógica e reflexiva, indo de documentários a pequenos VTs publicitários para televisão. 

O SOS Corpo manteve um Centro de Documentação na sua sede que reunia diversas publicações como os resultados das pesquisas, cartilhas, materiais pedagógicos e contavam com as produções audiovisuais do Instituto. O Centro de documentação também reunia outras publicações feministas e um acervo com materiais recebidos de movimentos e organizações. O público tinha a possibilidade de acessar o acervo presencialmente ou solicitar o envio de cópias por correspondência, o que promoveu a circulação dos materiais produzidos pelo SOS Corpo por espaços de militância diversos.

Neste espaço, compartilhamos os vídeos encontrados no acervo do SOS Corpo. Alguns são parte da produção do próprio Instituto, outros foram produzidos através de parcerias ou por outros movimentos, como o Movimento das Trabalhadoras Rurais do Nordeste – MMTR-NE e as Loucas de Pedra Lilás, grupo de teatro de rua que nasceu em 1989 dentro do SOS Corpo e em 1996 se institucionalizou como outra organização. As alianças do SOS Corpo com diferentes organizações de mulheres do estado se revelam também nesse acervo, que reúne materiais que demonstram a diversidade da luta das mulheres em Pernambuco. 

Agrupamos os vídeos encontrados no acervo do SOS Corpo em cinco recortes, tendo como base a categorização do Vídeo Popular feita por Luiz Fernando Santoro (1989). Na apresentação de cada sessão, apresentamos algumas reflexões sobre as produções e seus contextos.

1. Registros

No processo de digitalização do acervo do SOS Corpo, nos deparamos com fitas em VHS que continham imagens e sons tal e qual haviam sido gravados. Foi assim que encontramos momentos de conversas no fora-de-quadro, encenações que não se dão como o esperado (e se repetem) e entrevistas na íntegra, sem cortes da edição. O que ao olho da edição era “sobra”, aos nossos se tornou um desvelar não apenas do que era produzido, mas de como se pensava a captação. Esse recorte é composto pelos materiais brutos de três filmagens diferentes encontradas na mesma fita, a “SOS02”. Alguns pedaços deles podem ser reencontrados em outros vídeos, mas esse conjunto se coloca pela proposta de que há uma certa autonomia nessas imagens e sons mesmo sem interferência da edição.

O material intitulado Entrevistas sobre aborto é parte das brutas do vídeo Por que não?, produzido pelo SOS Corpo em parceria com a TV Viva em 1986. Nele, encontramos quatro entrevistas com mulheres que vivenciaram o aborto de formas diferentes. Mas, mais do que isso, ao longo de quarenta e três minutos de conversas, o vídeo também abre espaço para contradições, dando a ver o tamanho da complexidade do debate sobre a legalização do aborto em nosso país. Entendemos o motivo desses não serem os trechos selecionados pela edição – os produtos finais buscam refletir o entendimento e o projeto político da instituição. Além disso, era e continua sendo preciso muita estratégia para criar uma narrativa sobre a legalização do aborto que se comunique com as pessoas, encare tabus, gere solidariedade e informação. O mais difícil talvez seja sentir as imagens e sons que ficaram no arquivo como imagens e sons do presente. A repetição dos conflitos ao longo do tempo instaura uma sensação de luta interminável, por mais que se visualize com nitidez a absoluta urgência para a legalização do aborto no Brasil.

Por sua vez, Cenas do grupo de teatro tanto pode ser um material bruto cujos fragmentos compõem o vídeo Em busca da saúde (1993), ou um filme em si. Defendendo a segunda opção, observamos como a repetição dos takes, os movimentos da câmera em sua investigação visual e as falas de fora-de-quadro trazem uma camada processual que potencializa a filmagem da preparação do grupo Loucas de Pedra Lilás para a sua primeira apresentação de rua no centro do Recife. Elas ensaiam, pintam os rostos e são convocadas por uma entrevistadora (Angela Freitas) a falar sobre as lutas das mulheres. O processual evidencia não apenas a construção coletiva de algo que está prestes a acontecer, mas chama atenção para as relações que se estabelecem naquele momento. Esse filme-bruto se faz na força da construção coletiva feminista, deixando para quem o assiste a possibilidade de imaginar a intervenção de rua resultante desse processo.

Cenas do Grupo de Teatro Loucas da Pedra Lilás (1989)

https://youtu.be/VJaED3iUmDg

 *Acesse no Youtube do Canal do Acervo do Vídeo Popular em Pernambuco

O último vídeo deste recorte, Debate sobre educação sexual, é a gravação completa de uma roda de diálogo entre educadoras/es sobre educação sexual nas escolas realizada em 1986. Os fragmentos dessa roda foram utilizados em Sexo na classe (1986), premiado como melhor vídeo educativo no IX Festival de Cinema e Vídeo de Cuba, em 1987. Na gravação bruta, os convidados trazem reflexões sobre o que pode ser a educação sexual, para além de uma disciplina na grade curricular de uma escola que já está desvinculada da vida real vivida pelos seus alunos. O moralismo religioso, a abordagem exclusivamente biológica da sexualidade e recortes de classe na repressão sexual são alguns dos tópicos levantados. Após cinquenta e cinco minutos, o debate finda e a câmera começa a captar imagens de cobertura enquanto ouvimos os convidados avaliarem a conversa, muitas vezes no fora-de-quadro. “Não havia concordância, não. Havia muita educação” diz uma das convidadas, que acaba trazendo uma pista da proposta política do uso do vídeo pelo SOS Corpo. Cerca de trinta anos depois, o debate sobre educação sexual nas escolas continua aceso e sendo uma pauta disputada entre setores progressistas e conservadores no país. Mais uma vez, os vídeos nos encaram trazendo o tempo próprio das lutas, em que parece não caber uma noção unívoca e linear.

1. Edição Simples

Na categoria Edição Simples, apresentamos registros de encontros de mulheres, organizados com o apoio ou em parceria com o SOS Corpo, e vídeos que tratam de temáticas trabalhadas pela organização a partir de linguagens que se situam entre o documentário e a reportagem televisiva. Neles, percebemos a centralidade das discussões sobre a saúde sexual e reprodutiva na atuação do Instituto, mas percebemos também como esses temas estavam entrelaçados a outros, como a violência contra as mulheres, desigualdades sociais, machismo e moralidade religiosa.

No início da década de 1980, falar sobre o nosso corpo e a nossa sexualidade era, em si, um ato transgressor. Os risos que vemos em diferentes momentos de  “Encontro de Paulista” (1987) , “Atreve-te a saber” (1985) e “Tá ligada nessa” (1985) nos permitem entrever um misto de vergonha e libertação ao falar sobre sexo e prazer. Se, por um lado, a sexualidade era um tema tabu na sociedade, por outro, o Brasil, assim como outros países da América Latina, era atravessado por grandes campanhas de planejamento familiar e de esterilização em massa, que tinham como foco principalmente as mulheres pobres, que por vezes eram inclusive submetidas ao procedimento sem o seu consentimento.

Como mostra o vídeo “Tá ligada nessa”, anticoncepcionais eram distribuídos de forma indiscriminada entre as mulheres, sem a devida informação ou acompanhamento, e a esterilização era fortemente incentivada, gerando taxas assustadoras. O aborto, por outro lado, só era permitido nos casos de estupro e risco de vida para as mulheres, sendo um tema que envolvia uma série de discussões morais e religiosas. O acesso à interrupção da gravidez nos casos previstos na lei, todavia, era ainda mais difícil do que nos dias de hoje, uma vez que não existiam serviços de atendimento ao aborto legal no sistema público de saúde. O espaço para o debate crítico sobre esses temas só foi possível no processo de abertura política, momento no qual esses vídeos foram produzidos. 

“Tá ligada nessa” e “Por que não?” (1986) abordam estas questões num formato que se aproxima ao de um programa de televisão, entrevistando mulheres de diferentes idades e contextos. O recurso da narração é utilizado para apresentar a visão do SOS Corpo, trazendo um tom crítico e de interrogação sobre os moldes nos quais o planejamento familiar vinha sendo acessado pelas mulheres. Notamos um tom didático, sendo os próprios vídeos ferramentas pedagógicas para levantar discussões entre espectadoras e espectadores.

“Encontro de Paulista” e “Atreve-te a saber” são registros de encontros de mulheres organizados na Região Metropolitana do Recife. Neles, podemos ver uma grande riqueza de materiais e metodologias pedagógicas utilizadas pelo SOS Corpo, que vão desde a partilha da experiência inspirada pelos grupos de autorreflexão feministas, passando pelo teatro como ferramenta para apresentar e reconstruir narrativas sobre a vida das mulheres, e materiais desenvolvidos pela instituição para promover conhecimento e discussões sobre o corpo das mulheres, como cartilhas, desenhos e réplicas de partes do nosso corpo. 

Nas entrelinhas desses vídeos, se expressam algumas desigualdades entre as mulheres. Essas relações nos conectam a uma série de discussões presentes na historiografia do feminismo, que levaram a importantes elaborações e transformações deste campo político nas últimas décadas. Em “Encontro de Paulista”, por exemplo, podemos ver que os debates do encontro são conduzidos pelas militantes do SOS Corpo. Na forma como as participantes falam sobre o seu contato com o Instituto, se revela uma divisão entre “promotoras” e “público” das ações. O vídeo, assim, nos deixa com a ideia do SOS Corpo como um grupo que levava ou despertava certas discussões entre as mulheres organizadas em bairros de periferia.

Em “Atreve-te a saber”, por outro lado, Dulcineia Xavier, uma das organizadoras, ao ser perguntada sobre o que diferencia aquele encontro dos outros realizados pelo SOS Corpo, diz: “A diferença é que está sendo organizado pelo SOS e por dois grupos de Casa Amarela, que é o Alto José Bonifácio e o Alto do Mandu. Também, eu acho que outra diferença é que, por exemplo, uma diferença que parece tola, né, mas muito significativa, é que o pessoal, mesmo tendo assumido a cozinha (…) pode assumir também a discussão. Porque uma coisa a gente há de convir, também o SOS está aprendendo. E acho que essa aqui é uma boa lição do pessoal dos grupos”. Dulce, como é apresentada no vídeo, revela a construção de processos de articulação que tensionam essas desigualdades e como o aprendizado se dava de forma mútua ao longo dessa trajetória de construção de alianças. 

Podemos olhar para esses registros como capturas de um campo político em formação. É possível interpretar a narração de Liz Ramos, então educadora do SOS Corpo, no final de “Atreve-te a saber”, como expressão do entendimento sobre a ampliação do feminismo a partir da chegada de mais mulheres – não como uma ideia de levar o feminismo para as outras, mas de trazer as outras para compartilhar conosco o feminismo, construir o feminismo com a gente. Ela diz: “Essa coisa não é mais só nossa, ela não é mais só nossa. Cada vez mais a gente está transmitindo essa vontade de ser livre. O trabalho da gente faz isso, está em contato com pessoas que também estão com essa vontade de ser livre. Também estão buscando essa liberdade”.

Nos vídeos desses dois encontros, assim como em “1º Encontro Estadual de Mulheres Trabalhadoras Rurais de Pernambuco” (1987), a montagem utiliza a estratégia de intercalar imagens com enquadramento fechado nas mulheres presentes e imagens mais abertas, onde se pode ver a coletividade. As imagens que capturam os rostos das participantes permitem que a gente se aproxime ou imagine quais eram os sentimentos vividos naquele momento: o interesse, a concentração, o riso, a vergonha, a empolgação. 

Frases estampadas nas camisas de algumas militantes que aparecem nos dão pistas sobre as preocupações que atravessavam a militância feminista:  “Constituinte pra valer tem que ter palavra de mulher”. “Diretas já”. Os movimentos feministas foram importantes sujeitos na transição política vivida pelo país. Estavam preocupados em trazer à luz temas que tensionavam o conservadorismo da sociedade da época, mas também em construir mecanismos institucionais, direitos e serviços públicos, que pudessem garantir uma vida melhor para nós mulheres.

3. Documentário

Esta proposta de recorte se coloca após algumas dúvidas e debates entre nós. As produções aqui agrupadas trazem elementos muito parecidos com os que encontramos nos vídeos em “Edição simples”: narração sintetizadora, registros de falas em mesas, entrevistas individuais e uso de imagens de cobertura. Mas a diferença entre os agrupamentos se dá por um uso mais estruturado da narrativa e uma visão mais panorâmica dos debates nos vídeos integrantes do recorte “documentário”. Tratam-se de vídeos produzidos com melhores condições materiais, o que se reflete diretamente num trabalho minucioso e estratégico do roteiro e viabiliza uma investigação narrativa para além do circunscrito. Aqui, vemos debates que, por vezes, buscam  aproximar diferentes contextos e abrir espaço (mesmo que apenas pontual) para visões antagônicas e divergentes. Para além de uma ferramenta de compartilhamento de informações mais imediatas, os vídeos aqui são explorados para  produzir reflexões sobre as lutas das mulheres de forma mais ampla. 

Com uma estética televisiva, Aborto – Desafio da legalidade (1995) localiza o debate sobre o aborto na esfera da saúde pública e aborda os casos de implementação do programa Aborto Legal no Hospital Arthur Ribeiro de Saboya, em São Paulo, e no CISAM – Centro Universitário Integrado de Saúde Amaury de Medeiros, no Recife. Nesse deslocamento geográfico, a sensação de isolamento das iniciativas institucionais  que tratam da garantia do aborto legal se transforma numa possibilidade de rede. O vídeo investe no entrelaçamento das linhas dessa rede, que tanto é usada para conectar as lutas quanto para amparar as mulheres vítimas de violência sexual. 

Em Dawn – Inter Regional Meeting, a rede que conecta as lutas das mulheres se amplia. Ativistas de diversos países do “terceiro mundo” estão no encontro da Rede Dawn-Mudar, realizado em maio de 1990, em Niterói (RJ), para analisar como a crise econômica global impacta de diferentes formas as mulheres. O documentário traz um panorama dos debates do encontro, onde se colocam as convergências e singularidades das lutas nos territórios. A montagem articula a complementaridade do pensamento e também abre espaço para divergências, a exemplo do debate sobre a necessidade da mudança das ferramentas de análise das condições de vida das mulheres naquele momento. Dawn… se destaca dos demais vídeos pelo tom institucional. É também um vídeo na língua inglesa, o que sugere que visa alcançar territórios além do brasileiro.

O recorte desse agrupamento tem a particularidade de ser composto em sua minoria por vídeos digitalizados exclusivamente pelo projeto (Aborto – desafios da legalidade e Dawn – Inter Regional Meeting), mas que se relacionam com outros vídeos anteriormente digitalizados e disponíveis online: Em busca da saúde (1993), Sertanejas Opus n.2 (1995) e Coragem de ser (1998). 

Sertanejas Opus n.2 e Coragem de ser se voltam para o Movimento da Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste (MMTR-NE), fundado em 1986. O primeiro, de autoria do SOS Corpo, e o segundo, realizado por Kara Elise Hearn em parceria com o MMTR-NE, investigam as dificuldades enfrentadas pelas mulheres trabalhadoras rurais para se organizarem e atuarem politicamente em seus territórios, guardando parte da memória fundante da luta com depoimentos de diversas militantes. 

Em busca da saúde, por sua vez, faz uso de uma narração estruturada com fatos históricos, dados sociais e recortes de jornais que apresentam o cenário das lutas das mulheres no país e na capital pernambucana. A luta pela saúde é colocada como um ponto de partida para pensar a qualidade de vida das mulheres num momento em que os movimentos feministas denunciavam a forma como a laqueadura se expandia como método contracepcional entre mulheres de classes populares. 

4. Roteiro Original

Neste recorte, a encenação é um recurso que atravessa todos os vídeos em maior ou menor intensidade. É possível encontrá-la entrelaçada a outros recursos narrativos ou, mais pontualmente, impulsionando o vídeo para uma ficção. A encenação funciona como uma estratégia para gerar uma comunicação mais pessoal e, através dela, se estabelece um vínculo de cumplicidade momentâneo para compartilhar informações sobre direitos sexuais e reprodutivos que ainda podem ser vistas como tabus.

Em Quem Faz Sexo Faz Prevenção – O vídeo (1994), um casal hétero interpretado por mímicos assiste à campanha sobre câncer de colo de útero na TV de casa. A encenação coloca uma diferença entre a recepção da campanha pelo homem e pela mulher e, a partir disso, o vídeo se vale de uma variedade de recursos para informar e afirmar a importância do exame preventivo. São utilizadas entrevistas com especialistas, relatos de mulheres e cobertura visual com narração de cada etapa do processo de coleta do exame, por exemplo.  O vídeo, nessa alternância, aproxima as dificuldades encontradas no ambiente doméstico dos problemas gerados pela falta de informação e de políticas públicas de saúde mais efetivas para as mulheres. 

Com essa aproximação, a produção traz um debate feminista sobre direitos sexuais e reprodutivos que se posiciona pelo fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS). Parte das filmagens foi realizada no CISAM – Centro Universitário Integrado de Saúde Amaury de Medeiros, o que já aponta algumas das escolhas políticas sobre o que mostrar nessa narrativa. Ainda hoje, o hospital é uma referência a nível nacional quando falamos sobre direitos sexuais e reprodutivos.

Seguindo a estratégia de criar uma comunicação com cumplicidade, temos os VTs de trinta segundos da campanha “Quem faz sexo faz prevenção” veiculados nos anos 1994, 1995 e 1996. Neles, as atrizes encenam falando para o “olho” da câmera, convocando as espectadoras a uma reflexão sobre autocuidado, acesso à saúde, vergonhas e medos. Temos também um dos “Transas do Corpo” (1986), programa do SOS Corpo presente na grade da TV Viva, sobre pílulas anticoncepcionais. A encenação entra pontualmente na narrativa para nos mostrar a rotina de uma mulher que sofre com os efeitos colaterais da pílula.

Os dois últimos vídeos do recorte trazem o recurso da encenação para o centro da narrativa. Em Um bem que se quer (1999), desloca-se o grupo teatral Loucas de Pedra Lilás das ruas para um estúdio. As Loucas… fizeram importantes intervenções de rua no Recife e em outras cidades entre os anos de 1989 e 2012, transformando transeuntes em espectadores de apresentações sobre direito ao aborto, violência contra as mulheres, entre outras lutas feministas. A ida ao estúdio, iniciativa do grupo teatral, que nessa altura funcionava como uma organização não governamental (ONG), em parceria com o Fórum de Mulheres de Pernambuco e a Rede Feminista de Saúde, teve como propósito uma campanha pelo fortalecimento do SUS, na qual cantavam “Como não dá para ter saúde?”.

Prevenção – Caminho para saúde, de 1998, é uma produção de ficção na qual a protagonista é uma agente de saúde que trabalha pela conscientização de sua vizinhança sobre a importância dos exames preventivos. Todo o conteúdo informativo é atrelado a conflitos vividos pelas personagens, evidenciando o caráter didático do roteiro. Além do uso singular da ficção, o vídeo também chama atenção pelo investimento de produção, notável pelo elenco, cenários, fotografia e desenvolvimento da história. Prevenção… é uma das poucas produções que o SOS Corpo realizou com vários parceiros institucionais: REDEH – Rede de Desenvolvimento Humano (RJ), IDAC – Instituto de Ação Cultural (RJ), Grupo Transas do Corpo (GO) e Ministério da Saúde.

5. Feminismo na Televisão

No levantamento das fitas que estavam na sede do SOS Corpo, encontramos um tipo de material que não esperávamos encontrar: registros de telejornais ou outros programas de televisão em que eram abordadas ações ou temas de interesse do Instituto. A grande maioria dessas fitas reúne registros de curtas coberturas de jornais locais sobre ações realizadas pelo SOS Corpo, pelo Fórum de Mulheres de Pernambuco, pelas Loucas de Pedra Lilás ou outros movimentos e organizações que atuavam no mesmo campo político. O material continha, também, o registro de entrevistas um pouco mais longas com integrantes do Instituto ou organizações parceiras e, em menor número, o registro de programas exibidos nacionalmente. 

São materiais que demonstram o interesse do Instituto, à época, em mapear o que os veículos de televisão estavam transmitindo sobre as suas ações e, de forma mais ampla, sobre os temas relevantes para a sua atuação. Os trechos retirados da TV mostram a capacidade de inserção do SOS Corpo em diversos canais de televisão e no debate público neste contexto. Pontuamos dois aspectos que podem nos ajudar a interpretar o esforço de estabelecer uma interlocução com a grande mídia: a importância da televisão como meio de comunicação de massas antes da popularização da internet; e a aposta de organizações e movimentos sociais, no contexto de abertura política, de disputar espaços institucionais. 

Os trechos gravados desenham o contexto histórico dentro do qual o Instituto estava atuando: a revisão constitucional de 1993, a luta pela implementação integral do PAISM (Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher), o estabelecimento da obrigatoriedade do oferecimento dos serviços de aborto legal no SUS, a particpação das mulheres brasileiras na Conferência de Beijing. Eles nos apresentam uma miríade de frentes e reivindicações nas quais o SOS Corpo atuava, como violência contra as mulheres, legalização do aborto, políticas de saúde voltadas ao HIV e Aids, licença maternidade e paternidade, condições de trabalho das mulheres rurais, entre tantas outras. Apresentam, também, o tipo de ação desenvolvida no estado, principalmente na Região Metropolitana do Recife, como atos de rua com teatros e performances, organização de seminários, participação em sessões na Câmara dos Vereadores e produção e exibição de vídeos como estratégia educativa.

Em cada fita encontramos um conjunto de vídeos separados por cartelas que identificam a data e o canal de televisão que veiculou aquela notícia. Elas reúnem notícias veiculadas em diferentes canais sobre uma mesma ação ou tema, como coberturas de ações no 8 de março, Dia Internacional das Mulheres; no 25 de novembro, Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres; 28 de setembro, Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta pela Descriminalização do Aborto; lançamentos de materiais do SOS Corpo.

Ao assistir algumas das entrevistas, tivemos o sentimento de que elas poderiam ter sido gravadas ontem, pelo crítico cenário que seguimos enfrentando em Pernambuco no acesso à saúde ou na violência contra as mulheres. Em outras, encontramos um espaço muito mais aberto a temas como a legalização do aborto, como na entrevista de Nadeje Domingues, militante do Fórum de Mulheres de Pernambuco, a Graça Araújo no jornal da TV Jornal. Em outra entrevista, com a Irmã Ivone Gebara no contexto da polêmica em torno da sua declaração a favor da legalização do aborto, encontramos uma concepção de religiosidade conectada à justiça social e à liberdade que tem tido cada vez menos espaço na TV e em outras mídias de grande circulação. Um passeio por esses arquivos nos dá algumas pistas sobre questões que permanecem e outras que se transformaram ao longo das últimas décadas.